Alguns dias atrás vi na TV a cabo A Batalha de Riddick (The Chronicles of Riddick), um filme de ficção científica e ação de 2004, reprisado pela enésima vez. É um filme para assistir sem grandes pretensões, com roteiro simples: Riddick é o anti-herói correto que, com esperteza e muita porrada, faz justiça com as próprias mãos e derrota todos os malvados que o perseguem ou que cruzam seu caminho, chegando por fim ao maligno chefe supremo do império dos necromongers, os monges fanáticos que dominam a galáxia e exterminaram seu planeta. Por que eles fizeram isso? Porque o lema daquele chefe supremo era: converta-se (e submeta-se) ou seja eliminado.
Entre os efeitos especiais (bonzinhos) e a história sem muito esforço para seguir, o filme tem como dois dos principais protagonistas um Vin Diesel novinho, mais atlético e menos pesado do que na franquia Velozes e Furiosos, e Karl Urban (como o vilão Lorde Vaako), também novinho e antes de virar o Dr. McCoy no reboot de Star Trek de J. J. Abrahams. É um bom passatempo, que eu já tinha assistido em outras vezes e que servia novamente como pano de fundo enquanto meu cérebro trabalhava em outros assuntos. Fácil de ver, fácil de esquecer, mas...
Mas no dia seguinte, no caminho para ir almoçar num restaurante, fui abordado na rua por um rapaz, mais para os quarenta do que para os trinta anos, de sandália e bermuda como eu, ansiosamente pedindo que eu comprasse um de seus colares por R$ 5,00 para que ele pudesse comer. Enquanto isso, dezenas de pessoas, vestidos em seus trajes sociais mandatórios nas empresas da região e boa parte devidamente identificados por seus crachás, passava por nós alheios ao que acontecia, focados apenas em conversar sobre os absurdos do trabalho, o futebol, a situação política, mas acima de tudo, almoçar logo (Comida! Oba!) e não terem desconto do salário por eventual atraso, e assim manterem o emprego de que muitos não gostam, mas que os mantém em condições de se sustentar até, algum dia, mudarem para outro emprego melhor, ou se aposentarem.
Mesmo sem precisar (para mim), comprei um colar para ajudar a matar a fome do artista/artesão que teve a ousadia de escolher um caminho sem sapatos, calça e camisa social, sem horários abrangentes (e sem pagar hora extra), sem salário fixo, sem carteira assinada (ou micro-empresa individual, para trabalhar como pessoa jurídica), sem plano de saúde. Logo me lembrei de um amigo, muito inteligente e competente, casado, ainda o principal sustentador da casa e que ficara um ano sem emprego e agora estava aliviado por voltar a trabalhar em uma empresa, ter novamente salário, FGTS, décimo-terceiro, etc., e pagar as contas, mesmo tendo de trabalhar em outra cidade a mais de uma hora de distância (ida e volta tomando cerca de três horas do dia), com horários "elásticos" (que logo podem virar 24x7: a empresa em primeiro lugar).
Caiu a ficha: vivemos em plena sociedade do "converta-se ou seja exterminado", dos necromongers: se você não está encaixado no modelo socialmente aceito de trabalhar numa empresa para pagar todas as contas e impostos e assim ter onde morar, ter o que comer e cuidar da saúde que vai sendo destruída nesse esquema de trabalho predatório, suas chances de sobreviver - fazendo e vendendo artesanato, como o ansioso rapaz de bermuda, ou gastando suas economias, como meu amigo desempregado - ficam muito difíceis. Por exemplo: mesmo que tenha sua própria casa, se não pagar os impostos, você está encrencado; ou, se não tiver dinheiro para comprar comida (industrializada, com agrotóxicos, etc.) no supermercado, você não consegue cultivar sua própria comida no concreto poluído da cidade grande.
Ainda que o corpo subsista, o espírito é constrangido. É o extermínio dos sonhos, da alegria de viver, da satisfação interior que não tem preço.
No filme, Riddick se esconde, é perseguido, é forçado a enfrentar os vilões e por fim, claro, triunfa. No nosso cotidiano, não temos a garantia do diretor a nosso favor e também não dá para - e nem devemos - esperar que surja um salvador externo; temos nós mesmos que lutar nossas batalhas diárias e mudarmos esse paradigma nefasto que conduz a sociedade cada vez mais globalizada e alienada. Sem perder o brilho no olhar e sem ingenuidade.
Quem diria: o filme despretensioso do Vin Diesel tinha metáforas importantes; ganhou meu respeito e minha atenção. Agora é nossa vez de batalhar por um roteiro e desfecho tão (ou mais) favorável quanto o que o Riddick alcançou ;)