sábado, 9 de agosto de 2014

O espírito de Suddhodana



Suddhodana Gautama – líder do clã Shakya e rei no estado de Kosala – foi o pai de Siddharta Gautama, o príncipe que se tornaria Buda (de Buddha, “iluminado”).

Para que Siddharta desfrutasse do que Suddhodana considerava que seria felicidade, o rei manteve o príncipe “protegido” e ignorante da existência de qualquer coisa que contrariasse a ideia de que no mundo só havia gente bonita, jovem, saudável, feliz e vivendo na abundância, além de ocultar a morte (o fim de toda e qualquer coisa no mundo físico).

Siddharta viveu feliz e ignorante, mas sua curiosidade cresceu e ele acabou saindo do palácio, do seu mundo perfeito e protegido (e extremamente simplificado, ou editado/censurado) e descobriu que o mundo era muito mais complexo e com coisas cuja existência lhe fora negada saber, por serem desagradáveis ou incômodas, mas que faziam parte da vida e eram necessárias ao crescimento moral, emocional e espiritual.

O príncipe abandona o mundo de favorecimentos em troca de sua evolução e após anos de aprendizado e busca, alcança a iluminação, recebe discípulos, e suas ideias, ensinamentos e exemplos viram uma filosofia que começa a se espalhar pela Ásia – e mais tarde pelo mundo – e ganha ares e estruturação de religião.

Mais de 25 séculos após a vida terrena de Buda e com a presença do budismo em grande parte do mundo, porém, parece que é o espírito de seu pai Suddhodana que está mais vivo, forte e presente do que todo o legado de Buda: o que se estabeleceu no mundo Ocidental e que por sua força econômica e influência cultural se espalhou pelo resto do planeta, é o apelo constante de que todos devem ser bem-sucedidos, bonitos, saudáveis, ter aparência jovem, ter fartura (muitos bens materiais) e poder, e a morte – a única certeza da vida – é algo a ser ignorado até que aconteça e aí ser tratada como uma catástrofe...

Mas se Suddhodana impunha sua visão de mundo a Siddharta porque queria que o filho fosse feliz, os controladores da sociedade mundial de hoje não querem a felicidade, mas sim a alienação de seus consumidores/trabalhadores: colocam padrões de beleza artificiais e inalcançáveis (e pouco saudáveis) à maioria quase absoluta da população; pregam (e cobram) virtudes que não têm; criam condições de vida – incluindo trabalho, alimentação e lazer – que não são saudáveis; estimulam a gratificação imediata e continuada das sensações físicas e dos instintos; abominam a idéia de doença e da morte – ignorando que são componentes normais da vida; e apresentam o consumo – de ícones, alimentos, produtos, idéias, etc. – como a solução para o vazio interior e carência que ajudam a criar, manter e crescer. 

Quem não for jovem, bonito, saudável, rico, bem-sucedido e poderoso – e aí se encontra 99,9999999999% da população mundial – que procure  lidar com suas limitações e fazer o melhor que puder e nesse processo amadurecer, mesmo que não alcance a iluminação como Siddharta alcançou, que pelo menos consiga o esclarecimento e assim deixe este mundo um pouco melhor do que quando aqui chegou. 

Mas ao ceder aos apelos de consumir sem pensar, as pessoas acabam vivendo num ciclo vicioso de insatisfação, ansiedade e frustração.

Siddharta, assim como tantos outros iluminados – famoso ou não – usava o contato com o mundo exterior para coletar elementos e conhecimento que ajudassem na sua compreensão e crescimento interior; nós, todavia, somos estimulados a dar atenção aos apelos exteriores em detrimento de nossa real demanda interior.

Alguém aí se habilita a seguir o exemplo de Siddharta, pulando os muros do palácio das ilusões e saindo para o mundo real?