quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Depois que o mundo não acabou


Depois que o mundo não acabou, as contas continuaram chegando e os sistemas informatizados dos bancos não perderam o fôlego para calcular e cobrar juros e multas por atraso.

Sem vulcões, terremotos, tsunamis, inversão dos polos magnéticos ou desinclinação do eixo da Terra, o jeito foi pegar a moto ou o carro, ou tomar o ônibus, trem ou metrô, e ir para aquele trabalho que muita gente comemorava que não veria mais.

Os times que foram campeões continuaram campeões, e os demais continuaram desejando que o ano fosse esquecido logo - alguns querendo até que a História fosse esquecida ou reescrita.

As desigualdades sociais e todos os demais problemas continuaram onde estavam: nenhuma nave apareceu com ETs para nos salvar, independentemente da nossa cor, classe social, credo, sexo ou culpas passadas. A responsabilidade e o trabalho para melhorar continuam por conta de cada um.

O mundo, que não acabou, continua não sendo justo, mas apenas um componente do processo de materialização da justiça, que se estende pelo tempo e pelo espaço.

Será que agora vai ser mais fácil aprender a fazer as coisas certas, sem precisar da ameaça do fim do mundo - ou sem precisar que o mundo acabe de verdade?

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Vivendo em sobrecarga

Pouco mais de um mês atrás, quando dava consultoria de TI em uma grande empresa de tecnologia, uma coisa me chamou a atenção: a analista de sistemas, a quem eu estava atendendo, estava dispersa e até sua digitação, normalmente rápida, estava errática e cheia de erros.

Numa pausa das atividades, perguntei a ela se estava tudo bem, e veio a explicação: com sintomas de gripe, resfriado ou "virose" - termo muito recorrente ultimamente -, a moça estava tomando remédios para combater os sintomas; a contrapartida é que ela estava com o raciocínio mais lento e a coordenação motora prejudicada, os famosos efeitos colaterais dos remédios alopáticos.

Quando estamos com uma doença, o corpo reage com uma série de sintomas para nos avisar que algo não está bem, e geralmente requer que a energia gasta em tarefas cotidianas seja redirecionada para o sistema imunológico combater as causas da doença, daí a necessidade de repouso.

Mas o que 99,99999 % das pessoas faz é tomar algum remédio para combater os sintomas, e não cuidar da causa. Muitas vezes o médico recomenda, sim, o repouso, mas uma vez eliminado o desconforto dos sintomas, a pessoa procura seguir em frente como se não estivesse doente, colocando seu organismo em sobrecarga.

E por que fazemos isso? Porque nos habituamos a viver em sobrecarga: a demanda pelos nossos serviços, seja no âmbito profissional, familiar, escolar ou social, não para de crescer, e poucos de nós tem a percepção e a coragem de admitir que a partir de um dado limite, somos incompetentes, por pura razão física - falta de tempo e de recursos suficientes -, para dar conta de tudo que nos é solicitado.

No caso da moça citada anteriormente, apesar de apenas ela realizar aqueles serviços, o receio das (imaginadas) implicações - avaliação ruim por parte da sua chefia, com baixa nos bônus anual (PLR, PPR, etc) e até possível demissão futura em tempos de corte de gastos - da sua ausência por alguns dias  para se recuperar adequadamente, era maior que a percepção que se estiver saudável e equilibrada ela produz melhor...

Nas grandes corporações - e nas médias e pequenas também, pois elas atendem às grandes - tratar as pessoas como recursos substituíveis e intercambiáveis, como se fossem peças de máquinas, tem sido cada vez mais frequente, indo na contramão das campanhas de marketing das próprias grandes empresas, onde se valoriza a diferença, a criatividade e a liberdade. Pense em quantas propagandas vemos na TV, internet, cinema, etc, mostrando jovens pulando, dançando, rindo, fazendo coisas diferentes e criativas - propagandas quase sempre patrocinadas por grandes empresas - e como isso contrasta com o ambiente dentro dessas mesmas empresas, onde uma hierarquia rígida e normas conservadoras de vestimenta, conduta e comunicação dão uma cara mais de século XIX do que de Era de Aquário.

O medo da perda - perda do emprego e assim do status, da segurança, do leite das crianças e da cerveja dos marmanjos - impede que as pessoas admitam que são competentes até determinado ponto, que a velocidade de assimilação e produção é limitada por fatores biológicos e psicológicos e não por cronogramas cujo único objetivo é um aumento de produtividade para maior lucro dos acionistas.

Assim, vivemos em sobrecarga, e ao invés de parar, analisar, ponderar e então agir, passamos apenas a reagir. Fica mais fácil para quem quer nos direcionar a consumir, votar e realizar aquilo que é mais adequado a eles, e não a nós.

Para aumentar nossa eficiência, é preciso fazer MENOS, para fazer MELHOR; admitir nossa incompetência a partir de certo nível; e parar de deixar o nosso destino nas mãos dos acionistas e seus inúmeros capatazes.

Entre as inúmeras coisas que não podem ser terceirizadas nesta vida, VIVER A NOSSA PRÓPRIA VIDA é uma delas, e com certeza a mais importante.

Viver em sobrecarga eventualmente, por determinada circunstância, é compreensível; viver assim todos os dias, não é admissível.